quinta-feira, outubro 28, 2004

.

(Reportagem do MSN)

COMO PERDER A INOCÊNCIA
NOSSA COLUNISTA LEMBRA SEU PRIMEIRO ENCONTRO COM A INTOLERÂNCIA
Assim que o sinal do recreio tocava, dois grupos automaticamente se formavam: meninas entravam numa sala para brincar de boneca, meninos organizavam o futebol no pátio. Embora a percepção de que era eu a única integrante do gênero feminino a preferir o pátio tivesse sido rápida, ela não vinha associada a sentimentos subversivos ou desencaixados. Era simplesmente uma constatação, que nunca me incomodou nem parecia perturbar os pequenos rapazes de 7 anos que driblavam comigo. Até que um dia tudo mudou. Numa manhã de sol forte em São Paulo, enquanto me preparava para chutar a gol, notei a diretora e duas professoras vindo em minha direção. “Futebol é coisa de menino, querida. Venha brincar de boneca.” Com essa frase, sob o olhar perplexo de meus companheiros, elas me arrastaram em direção a uma sala escura onde estava sendo comemorado o aniversário da filha de uma de minhas coleguinhas. Em volta da mesa havia uma dúzia de garotas que pararam de cantar “Parabéns a Você” assim que a porta se abriu. Durante alguns longos segundos, todas se viraram e me encararam com um misto de espanto e desdém. Até que uma delas resolveu, para meu alívio, me dar as costas e retomar a comemoração – e eu rapidamente fui ignorada, o que, aprendi anos mais tarde, é o menor dos males da discriminação. Envergonhada, acomodei meu corpinho num canto da sala escura e fiquei ali torcendo para que o mais longo recreio de minha curta existência terminasse.
Enquanto lá fora meninos eram meninos e ali dentro meninas eram meninas, minha vida mudava para sempre. Quando aquelas professoras me pegaram pelo braço e me impuseram as bonecas, elas estavam fazendo muito mais que corrigindo um provável desvio de sexualidade ou salvando meu futuro, elas estavam me arrancando um dos direitos mais fundamentais da infância: o direito de saber, sem que ninguém precise explicar, que somos todos iguais e, ao mesmo tempo, diferentes. De se dar ao luxo de não entender palavras como intolerância, discriminação e preconceito. O sagrado direito de ser inocente.
Com o episódio, perdi o privilégio de flutuar confortavelmente entre os gêneros sem que minha presença fosse questionada. Eu era, oficialmente, um equívoco.
Trinta anos mais tarde me vi disputando um campeonato de futebol organizado pelo Clube Pinheiros, um dos mais tradicionais de São Paulo. Garotas e mulheres talentosas e de todos os estilos, classes sociais e perfis levavam o público presente a calorosas manifestações de apoio. Ali, me peguei pensando em como a vida teria sido mais simples se intolerantes de plantão não tivessem procurado em minhas atitudes aparentemente irreverentes traços que pudessem indicar desvios de comportamento e que demandassem correção. Em como eu poderia ter me aceitado mais rapidamente se a preocupação alheia fosse com a minha felicidade e não com a perpetuação de padrões. E em como são as convicções que destroem a verdade que existe em cada um de nós. Eu certamente não deixaria de ser gay se me tivessem proibido de jogar e, naturalmente, minha homossexualidade não nasceu dentro de um campo de futebol. Entre um chute e outro entendi que a ignorância, a mãe de todos os preconceitos, é a maior inimiga de nossa riqueza suprema: a diversidade.
Àquelas professoras que acreditavam que me proibindo de jogar estariam assegurando minha heterossexualidade e salvando assim meu futuro, eu digo que meu futuro e minha dignidade estão, apesar de pessoas como elas, salvos.

A carioca Milly Lacombe, 37 anos, é jornalista. Seu e-mail: milly@trip.com.br

Sem comentários: