terça-feira, novembro 07, 2006

A filosofia de Espinosa

Maurício Rocha
O texto a seguir pertence ao professor de filosofia Maurício Rocha e foi publicado no caderno de literatura de O Globo, a propósito do lançamento do livro de Marilena Chauí sobre Espinosa. O texto tem a virtude de ser curto e claro na exposição da filosofia de Espinosa. Óbvio, não é sua intenção reconstruir os argumentos, mas apenas apresentar as conclusões.
Reproduzo-o sem autorização, mas com a evidente intenção de divulgá-lo.
(...)


Espinosa demonstra que Deus nada tem a ver com o que o vulgo, os clérigos e os doutores supõem, nem com o que as religiões reveladas, instituídas ou com o que as variadas formas de superstição costumam imaginar. Ele demole o núcleo do pensamento ocidental judaico-cristão: a "metafísica do possível" que presume a existência de um Deus que age de acordo com sua vontade onipotente, com seu intelecto onisciente, ou com ambos.

Destruindo a idéia de que a realidade do mundo é um ato de criação de um Deus transcendente, e concebendo a natureza como infinitamente infinita, eterna e una, ele nos diz que Deus é a causa imanente que permanece em si para produzir, mas na qual o que é produzido nela permanece. Ou seja, Deus é a causa de todas as coisas e é a causa de si.

Isso quer dizer que Deus produz todas as coisas como se autoproduz, sendo a causa imanente que constitui, na infinidade dos seus aspectos, todas as realidades particulares. Sendo causa de si, Deus age pela livre necessidade de sua essência e produz todas as coisas pela sua infinita potência, comum a todas as coisas.
Todas as coisas sendo expressões da potência infinita de Deus, seus efeitos são perfeitos, o que nada tem a ver com realização de um modelo ideal prévio: se todas as coisas são perfeitas é porque não há modelo,
ou plano divino, ao qual poderiam ser comparadas. Por isso, para Espinosa, não existe hierarquia em nenhuma parte do real, nenhuma parte da natureza vale mais ou menos que qualquer outra, e não há ser supremo oposto a seres inferiores.

Deus não persegue nenhum fim, porque um ser só pode visar a algum fim, representá-lo e desejá-lo, enquanto este lhe é exterior. Costuma-se dizer que é livre quem, por natureza, age segundo os fins e que estes fins são objetos de escolha. A qualidade dos fins é que permite afirmar o livre-arbítrio divino e sua justiça e estabelecer a diferença entre o pecado e a virtude. Mas para Espinosa, os "fins" são um modo de pensar que retira daquele que age sua autonomia, transformando-o em paciente ao submetê-lo a algo externo. Ou porque os fins não foram postos por ele (quando são fins humanos), ou porque se separaram dele (no caso de Deus). O problema maior é que essa ignorância é transformada em estrutura metafísica da realidade, com as imagens da criação e a da finalidade nascendo de uma imagem do próprio homem, projetada em Deus.

Como Deus é toda a realidade, nada existindo para além dele, a realidade atual das coisas é tudo o que ela pode ser, nem mais nem menos, em virtude de sua própria natureza. Nada falta ao real.

Com isso, Espinosa recusa o "possível", e demonstra que o "possível" não é um universo mais vasto que o real, pois não há outro mundo possível. E arremata dizendo que qualquer recurso à vontade de Deus, para explicar o que não se sabe, significa asilar-se na ignorância. Afirmando a imanência, isto é, "a realidade como auto-ordenada e auto-estruturada por um princípio inteligível, que é sua própria ação e sua própria existência", o filósofo diz que não há um grão de mistério nesse mundo, e que a realidade é plenamente inteligível. A imanência, como "nervura que sustenta todas as coisas e faz com que se comuniquem, articulando-se umas às outras; o que percorre todas as coisas e não falta nunca; o que prende, une e distingue todas as coisas" é a resposta espinosista à questão da origem.

Os golpes da filosofia de Espinosa atingem o edifício teológico-político: a representação ordinária da "potência" divina inspirada na idéia de "poder" dos reis, identificada à vontade pessoal de um indivíduo dotado, em relação aos outros, de uma posição excepcional, extraordinária, que lhe confere um caráter absoluto e quase divino (modelo encarnado no regime da monarquia absoluta, forma dominante do poder na Europa na segunda metade do século XVII).

Esta concepção do poder supõe que todas as decisões derivam de uma faculdade indeterminada e "irracional", diante das quais só resta sofrer suas conseqüências, oriundas de razões superiores, inacessíveis à compreensão dos sujeitos que são condenados a se submeter a elas por pura obediência. A interpretação da soberania política que daqui se destaca é marcada pela negatividade e pela arbitrariedade, sendo a figura de seu exercício a violência destrutiva. Enfim, esse poder é transcendente à realidade que ele comanda do exterior.

As pedras do pensamento de Espinosa atingem também a construção moral-teológica do mundo: a "vinculação entre liberdade e arbítrio, em Deus, e entre liberdade e culpa, no homem, decorrendo daí as noções de predestinação, eleição e juízo final (por parte de Deus) e de arrependimento, danação ou salvação (por parte do homem)". Espinosa recusa a teologia e as filosofias que compartilham tal presunção, como também a antropologia que transforma os homens em "um império dentro de um império", como uma realidade excepcional dentro da natureza.

Para ele o homem não é, em sua origem, racional e livre, como os relatos bíblicos e a tradição filosófica nos fazem crer. O homem pode tornar-se livre, mas para isso é preciso destruir a ilusão de uma causa voluntária que age contingentemente, de uma vontade, divina ou humana, cuja liberdade seria provada pela contingência de suas ações, pelo poder fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Espinosa considera a idéia de contingência um efeito imaginário, que supre nossa ignorância das causas reais das coisas. A contingência é passividade submissa ao poder de forças externas inesperadas e imprevisíveis. Em vez de afirmar a liberdade, a contingência a destrói, pois a oposição entre liberdade e necessidade deriva da tradição teológico-política que identifica a necessidade com a autoridade, e a liberdade com a desobediência. As normas sociais e morais só nos pedem obediência e nada nos dão a conhecer. É por confundir uma mandamento com algo a ser conhecido, que os homens se lançam e permanecem na servidão.

Espinosa não cessa de repetir que os homens julgam-se livres porque são conscientes de seus apetites, desejos e ações, mas ignorantes das causas que os determinam a apetecer, desejar e agir. Sendo o desejo a essência constitutiva do homem, não é negando-o, nem condenando-o, que podemos chegar à liberdade.

O filósofo holandês viveu e pensou em meio a um tempo cheio de perigos "com a convicção de que o ódio e o remorso são os maiores inimigos do homem e que só é livre aquele que nunca age por vingança, medo, ressentimento ou pena, porque a liberdade faz com que ninguém possa desejar viver bem, agir bem e ser feliz sem desejar viver, agir e ser, isto é, existir em ato". Ele empreendeu o exame da realidade complexa das "paixões tristes", que reúnem o infinito dos desejos e a perturbação da alma, a cupidez e a superstição. E nos diz que os homens que vivem da tristeza, aqueles que a exploram, e aqueles que se entristecem com a condição humana e com as paixões são os tipos de homem de que os tiranos necessitam. Porque eles precisam das almas tristes para ter êxito, assim como as almas tristes necessitam do tirano para perseverar.

Ele não opõe a liberdade à necessidade, mas sim a liberdade ao constrangimento, à passividade. Toda uma linhagem de pensadores costuma diferenciar entre agir "por vontade" (por liberdade) e "por natureza" (por necessidade), e supõe que o necessário é o constrangido, concluindo que o livre não pode ser necessário. Mas, para o filósofo polidor de lentes, a liberdade não é livre decisão de uma vontade, e sim "a necessidade interna de uma essência de existir e de agir segundo a necessidade das determinações que lhe são próprias". Nessa "ontologia do necessário", na qual a liberdade é poder de autodeterminação para agir, só somos livres quando a ação por nós realizada decorre da necessidade de nossa natureza, da força interna de nosso ser, e não do poderio de causas externas sobre nós.

Espinosa não escrevia para julgar, condenar, absolver, lamentar, mas para compreender, o que não significa pactuar, mas abrir "o árduo caminho para o mundo no qual possamos existir em ato, pois a sabedoria é meditação da vida, não da morte". As obras de Espinosa tratam de um mundo que não é "moral", mas que é ético porque vivemos nele. Por isso ele elaborou uma "Ética", e não uma sátira sobre a miséria humana, ou uma moral da culpa e do dever.

Espinosa viveu em meio às lutas religiosas e políticas dos Países Baixos, refúgio dos que são cassados em toda a Europa por sua audácia de pensamento ou por sua fé, e um dos poucos lugares onde as fogueiras do Santo Ofício não ardiam. Governada pelos "regentes" e pela burguesia mercantil que se expande mundo afora com suas Companhias das Índias, a República das Províncias Unidas era certamente a sociedade mais "livre" da época: lá eram publicados livros proibidos em outros lugares; lá a investigação na medicina, física e astronomia era feita sem preocupação com os dogmas da religião.

Mas o "século de ouro" holandês era assombrado pela prédica dos pastores que, aliados a representantes do poder político (a dinastia da Casa de Orange), condenavam tudo o que julgavam herético, mesmo se essas condenações não fossem necessariamente seguidas pelo poder civil. Insatisfeitos com tanta liberalidade e sonhando com um regime teocrático (vida política subordinada à religião), eles pregavam a "tolerância zero" diante dos que enfraqueciam a ortodoxia religiosa.

Espinosa escreverá o "Tratado teológico-político" para defender a "liberdade de filosofar" e mostrar que esta não é nociva nem à verdadeira piedade (que é interior), nem à solidez do Estado; mas que ela é necessária, porque é a superstição e o ódio teológico que arruínam a verdadeira piedade; além de serem os conflitos e intrigas dos teólogos que conduzem à guerra e destroem a paz e a prosperidade da República.

Defendendo a "liberdade de filosofar", ele não pronunciou a palavra "tolerância". Os argumentos que apresentou não se fundaram sobre um direito inato do homem, mas simplesmente sobre o fato de que as paixões não permitem que ele se cale. Um Estado que considere a liberdade de pensamento um perigo para sua segurança prepara sua própria ruína, na forma da tirania.

Espinosa nos revela a "secreta articulação entre a ignorância e o poder, na forma da tirania que se exerce sobre os corpos e as mentes. Sua obra constitui as lentes que permitem ver a presença de um desejo servil, supersticioso e insaciável de servir e de obedecer - que os homens imaginam ser fonte de fortaleza, quando é signo de aniquilamento individual e coletivo, impotência imaginada como força".

Filósofo excluído, perseguido, caluniado, Espinosa "não recusou a exclusão, mas demonstrou como e porque os poderes necessitam dela, evidenciando a fragilidade real que determina esses poderes e a nós mesmos, desde que sejamos coniventes com eles". Marilena Chauí lembra que "o excluído não é aquele que está fora do mundo social, político e cultural, mas aquele que foi posto para fora de um mundo que não pode suportar o risco de sua presença".

Um pensamento imanente implica em um modo de vida, pois seja lá qual for a importância das formulações teóricas de uma filosofia,terão de ser avaliadas segundo os atos de cada um. E "é naquilo que o discurso de Espinosa ilumina de modo insuportável que reside sua força", exigindo a nossa força para lê-lo.


Su: pelo Menos algUma boa eu devo a quem me deu esse texto! Como dói se abRir pra quem não sabe ver dentro! eu não ganheI, eLe perdeu e agOra temos outras coisas q nem são mais as mesmas... Se antes a sua covardia me dava nos nervos, agora ela me consola. mas não a desejo pra ele. Aliás, gostaria d ser menos obrigada a desejar sua felicidade. Apenas esquecer até o acerto d contas q um dia terei.