quarta-feira, agosto 04, 2010

Autoritarismo dos "pontos de vista" vão amolando facas

"Em Coqueiro Seco, Alagoas, o corpo do vereador Renildo José dos Santos foi encontrado degolado. (...) Travestis são mortos no centro de São Paulo com tiros nos olhos. (...). A classe média paulistana proíbe a instalação de uma casa para crianças com AIDS.
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O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos,possui alguns aliados.
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Já que invisíveis no dia-a-dia, a presença desses aliados é difícil de detectar. A ação desse discurso é microscópica, complacente e cuidadosa. Nunca dizem não, não seguem as regras dos torturadores, que reprimem e usam a dor. (...) Em momentos anteriores da nossa história, (...) Fomentador da desordem, promiscuo e perigoso era o perfil do trabalhador, enquanto vilas operárias eram construídas pelos patrões para um maior controle e vigilância dos seus atos. A perigosa vida fora das fábricas era cuidada pela polícia e pela medicina patronal.
(...)
Esses exemplos de amoladores de facas não pertencem a um passado banido pela razão e pela modernidade, muito ao contrário, foram seus porta-vozes, os fiéis escudeiros da construção de um Brasil culto, saudável e moderno. Nossa história não aponta para o fim desses atos, mas para uma reedição e aperfeiçoamento dessas mórbidas estratégias. Aos negros, ainda lhes é oferecida uma "subsistência", (...), a prefeitura de Coqueiro Seco, as ruas de São Paulo, as prais do Rio de Janeiro, são espaços que estilhaçam os espelhos de uma burguesia que deseja se ver asséptica, segura e feliz. São espaços que estilhaçam uma ética que se diz universal, mas que necessita da proteção da polícia e das grades de condomínios fechados para o seu funcionamento. Voltando à pergunta anterior, onde estarão os contemporâneos amoladores de facas?

Uma pista para o leitor: ligue a tv, leia os jornais, escute no rádio os debates sobre temas do dia-a-dia. Perceba nas entrelinhas das reportagens com profissionais do psiquismo, com religiosos e artistas famosos. Atente para as falas sobre sexo, sobre identidades e pestes. Incorporados em profissionais de prestígio os amoladores de facas circulam dentro e fora da mídia, produzindo a ingênua e eficaz impressão de uma fala individual e neutra.
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O autoritarismo dos "pontos de vista" funda-se no esvaziamento da implicação coletiva e da construção histórica e sociopolítica do olhar e do outro. O preconceito, remetido a uma questão pessoal esvazia suas tramas com o poder, sua eficácia política na manutenção e na desqualificação dos modos de existir.
(...)
O que os amoladores de faca tem em comum é a presença camuflada do ato genocida. São genocidas, porque retiram da vida o sentido de experimentação e de criação coletiva. Retiram do ato de viver o caráter pleno da luta política e o da afirmação de modos singulares de existir. São genocidas porque entendem a Ética como questão da polícia, do ressentimento e do medo. Não acreditam em modos de viver, porque professam o credo da vida como fardo ou dádiva. Trazer para a discussão sobre a Ética a eficácia dos amoladores de faca talvez seja uma possibilidade de evitarmos a impunidade dos assassinos de Renildo José dos Santos, dos travestis de São Paulo, dos mortos de Bongaba, dos mortos da ditadura, dos pequenos e intensos assassinatos que acontecem microscopicamente no cotidiano brasileiro.

Txt: A Atriz, o Padre e o Psicanalista - Os Amoladores de Facas
P. 45 à 49.

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