O Prego
Contam que um império ruiu e, vendo-se subitamente sem nada para fazer - sem potentados para receber, sem decretos para assinar, sem cabeças para mandar cortar, sem concubinas para coçar seu pé - o ex-imperador deciciu investigar a causa da sua ruína. Foi visitar o ex-secretário real na cadeia, já que de toda a corte só o próprio imperador, por uma deferência à sua antiga eminência, ficara solto. O ex-imperador queria fazer uma genealogia da sua derrocada.Para encher o tempo, para compreender seu destino.
- Foi a corrupção? - perguntou o ex-imperador ao seu ex-secretário.
- Não, não - disse o ex-secretário. - O império sempre foi corrupto. O pai do pai do seu pai já era corrupto. E no entanto todos reinaram até morrer, e morreram no poder.
- Foi alguma bobagem que eu fiz ou que eu disse?
- Não, não. Todos os seus antecessores fizeram e disseram bobagens. Quase tantas quanto você. Bobagem nunca derrubou ninguém neste império.
- O que foi então?
- Foi a batalha de Alvedrio - disse o ex-secretário. - Decididamente, a batalha de Alvedrio. Se não tivéssemos perdido aquela batalha, o império não teria se desmoralizado, você ainda estaria no poder e eu estaria em casa contando as minhas moedas, em vez de estar aqui catando palha.
- E por que nós perdemos a batalha de Alvedrio?
- Porque a coluna do meio não resistiu.
- E por que a coluna do meio não resistiu?
- Porque o comandante não deu a ordem.
- E por que o comandante não deu a ordem?
- Porque o cavalo dele claudicou na hora.
- E por que o cavalo dele claudicou na hora?
- Porque perdeu a ferradura.
- E por que perdeu a ferradura?
- Porque caiu um prego.
- E por que não recolocaram o prego?
- Porque não conseguiram encontrar.
- Quer dizer que meu império ruiu, eu perdi o poder, nós perdemos nossos milhões, vocês estão condenados à prisão e eu ao tédio - tudo por causa de um prego extraviado?
- É.
- Um mísero prego?
- Pois é.
- Mas isso é uma injustiça! Que mundo é este, em que um prego derruba um imperador?
E, tomado de ira, o ex-imperador rumou para os campos de Alvedriu, onde passou um dia inteiro, e de onde saiu diretamente para a presença dos juízes da república que substituira seu império. E pediu a reabertura do processo que o derrubara.
- Impossível - disseram os juízes. - O senhor deve dar graças a Deus por não estar preso. Foi derrubado por corrupção, omissão, e cantar música sertaneja sem habilitação.
- Eu sei. Mas surgiu um fato novo que reverte tudo, me redime e me dá o direito de reinvindicar a volta da minha credibilidade, da minha honra, da minha fortuna e do meu império.
- Como?
- Meu julgamento, e as revelações sobre minhas falcatruas, não teria acontecido, se não fosse a derrota de Alvedrio. E nós perdemos em Alvedrio porque a coluna do meio não resistiu, porque o comandante não deu a ordem, porque seu cavalo claudicou, porque sua ferradura caiu, porque um prego se perdeu.
- E qual o fato novo? - perguntaram os juízes.
- Eu encontrei o prego! - gritou o imperador, mostrando-o em triunfo.
(Como é que termina a história? Não se sabe. Parece que os juízes, caridosamente, mandam o imperador ir para casa e esquecer aquilo. Mas tomam uma providência. Em hipótese alguma se deve deixá-lo aparecer na televisão com sua história e o prego. Senão ele convence todo mundo.)
(Luís Fernando Veríssimo - Humor nos Tempos do Collor - L&PM Editores 1992)
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