O espírito da nossa coisa
Quem acha que o correspondente do New York Times no Brasil simplesmente não nos compreende talvez não saiba que ele tem um notório precedente histórico. Em 1919, quando o mundo recém começava a tomar conhecimento das teorias que um tal de Albert Einstein descrevera em obscuras publicações científicas, o Times escalou para entrevistá-lo o seu especialista em golfe! O jornalista Henry Crouch entendeu tudo errado e muitos dos mitos que perduram na imaginação popular sobre a Teoria da Relatividade se devem ao seu trabalho. Entre outras coisas, Crouch anunciou que Einstein estava prestes a publicar um livro sobre suas especulações que só três pessoas em todo o mundo compreenderiam.
O Larry Rohter pode argumentar que nos entende um pouco mais do que o Henry Crouch entendia de física e também que Henry Crouch, no seu lugar, não estaria muito errado se anunciasse que só três pessoas em todo o mundo, fora os brasileiros, tinham condições de entender o Brasil. Os números do Einstein não eram para qualquer cabeça, mas eram compreendidos (e disputados ou não) por uma grande comunidade científica internacional. Mas quem entende, por exemplo, a matemática da eleição do Severino? Talvez o Times tenha decidido que, assim como a física de Einstein era tão revolucionária que só um total inocente no assunto captaria sua originalidade, quem viesse capacitado para entender o Brasil não pegaria o espírito da nossa coisa. Entender o Brasil seria falsificá-lo.
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Não foi o Henry Crouch, mas o poeta Paul Valéry (estou tirando tudo isto do livro de Bill Bryson A Short History of nearly Everything) que um dia perguntou ao Einstein se ele carregava um caderninho para anotar suas idéias. Einstein se surpreendeu com a pergunta e respondeu que não era preciso: "Eu quase não tenho idéias". Na verdade, Einstein teve poucas idéias na sua vida. Pelo menos duas delas mudaram a história do pensamento humano e nossa percepção do mundo.
Dois outros representantes da capacidade mental da nossa raça nunca pararam de ter idéias, e os dois estão sendo homenageados aqui em Paris no momento, cada um à sua maneira: Jean-Paul Sartre, que nasceu há cem anos, e Charlie Parker, que morreu há 50. Sartre é o assunto de várias primeiras páginas em publicações locais, enquanto o povo do jazz lembra o gênio de Char-li Par-kér, acento nas últimas sílabas. Nas comemorações do centenário de Sartre, nota-se uma certa nostalgia do que ele era e na França não existe mais: um maitre penseur, que não é um chefe de garçons distraído mas um intelectual que domina sua era.
(Verissimo)
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