sexta-feira, outubro 26, 2012

Eu, Eduardo Marciano - Sabino

Melhores momentos:

"Eu me equilibrando em viadutos com meus amigos bêbados, escritores sem livros, músicos sem discos, cineastas sem filmes, conversando por citações, atuando como lordes pândegos sem um tostão no bolso, trocando os dias pela noite (..
.) Eu que já me vendi barato, precisando ser alguma coisa na vida, preferindo me arrepender pelo que fiz do que pelo que não fiz. (...) Eu que já ouvi tantas vezes que pareço estar indo para algum lugar que não é aqui para me encontrar com uma pessoa que ninguém conhece....Eu e meus encantamentos românticos infantis. Eu, cheio de arestas que ferem sem querer. Eu que vivo e ando depressa demais... Eu, Eduardo Marciano, que tanta nostalgia carrego dos lugares onde nunca estive, das coisas que nunca cheguei a fazer. (...)

Eu e minhas pretensões de sacrifício: escrever é renunciar, não se deter diante de nada, não respeitar nada, os que tem nojo fracassam, é preciso ter pulso, é preciso ter estômago, a literatura é como se você tivesse que renunciar a todos os caminhos etc. (...) Eu querendo me libertar do meu destino. Eu, Eduardo Marciano, que estou na verdade em algum ponto lá atrás, pensando na minha vida de agora como uma possibilidade remota. (...) Eduardo Marciano, sempre começando, fazendo da interrupção um caminho novo. Eu, Eduardo Marciano, sempre recomeçando, acalentando o sentimento de que algo novo se anuncia."


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Parte do livro na íntegra:

'Eu, Eduardo Marciano, que planejei, mas não tive coragem de quebrar o lustre na porta do colégio no último dia de aula. Eu, dividido entre o desejo e o nojo, a ânsia de pureza e a repulsa a mim mesmo. Eu e meus pressentimentos de ruína, morte que tantas vezes dormiu ao meu lado. Eu que sempre pude ouvir a respiração da morte. Eu me equilibrando em viadutos com meus amigos bêbados, escritores sem
livros, músicos sem discos, cineastas sem filmes, conversando por citações, atuando como lordes pândegos sem um tostão no bolso, trocando os dias pela noite e as noites por coisa alguma. Ou então, sozinho, ao longo da praia, me sentindo um miserável e tudo inútil, vazio, inócuo, despropositado - sórdido. Eu que já me vendi barato, precisando ser alguma coisa na vida, preferindo me arrepender pelo que fiz do que pelo que não fiz. Eu, mais capaz de me fazer amado do que de amar. Eu que já ouvi tantas vezes que pareço estar indo para algum lugar que não é aqui para me encontrar com uma pessoa que ninguém conhece. Eu, o puro, o escolhido, o que não se contamina. Eu que trago em mim o germe do pecado e da podridão. Eu e minha culpa maior do que o mundo. Eu e meus encantamentos românticos infantis. Eu, cheio de arestas que ferem sem querer. Eu que vivo e ando depressa demais, esbarrando indiferente em quem passa por mim. Eu, Eduardo Marciano, que tanta nostalgia carrego dos lugares onde nunca estive, das coisas que nunca cheguei a fazer. Eu que nunca me senti satisfeito ou completo. Eu que tanto nadei contra mim mesmo em piscinas vazias. Eu, eternamente constrangido com a vida. Eu que já nasci velho.

Eu e meus acessos de pânico, taquicardia e vertigem. Eu e o chão que me falta, a eterna negação de mim mesmo. Eu, Eduardo Marciano, e o vórtice negro. Eu sozinho no meio de uma multidão, fora do tempo, perdido. Eu que idealizo meu enterro, sempre na rua até tarde da noite, gastando o tempo com quem desconheço. Eu me perguntando se acredito mesmo em Deus, ou em mim mesmo. Eu e a recorrente sensação de que tudo isso já aconteceu, com uma expressão de déjà vu costurada aos olhos.

Eu e minhas pretensões de sacrifício: escrever é renunciar, não se deter diante de nada, não respeitar nada, os que tem nojo fracassam, é preciso ter pulso, é preciso ter estômago, a literatura é como se você tivesse que renunciar a todos os caminhos etc. Eu que já rasguei tantas idéias antes mesmo de levá-las ao papel. Eu assombrado pela constante sensação de que perdi alguma coisa e que fiz a escolha errada. Eu querendo me libertar do meu destino. Eu, Eduardo Marciano, que estou na verdade em algum ponto lá atrás, pensando na minha vida de agora como uma possibilidade remota. Eu que sempre estive muito longe de onde deveria estar. Eu que estou sempre partindo: sou a sombra desse outro que caminha pelas ruas e que me desconhece. Eu que passo meus dias com as mãos vazias, buscando por ele, para depois perdê-lo e novamente encontrá-lo. Eu, Eduardo Marciano, sempre começando, fazendo da interrupção um caminho novo. Eu, Eduardo Marciano, sempre recomeçando, acalentando o sentimento de que algo novo se anuncia.'

Fernando Sabino

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