Apelo
(Dalton Trevisan)
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
Resposta
(Rita Apoena)
As meias, senhor, as meias eu vou ensinar como se costuram.
Primeiro, é preciso alinhavar o tempo. Achar a ponta mais longe e desfazer os embaraços, partindo do fim para o começo. E eu já estava no ônibus quando hesitei, quando desci no primeiro ponto que a agulha desfez entre nós. Subi as escadas em caracol, tentando cerzir a nossa fazenda, já estampada de flores tão murchas e, por mais um instante, voltei para casa, senhor. Olhei a casa, senhor. Uma camisa jogada no chão, com os braços abertos, à espera de um abraço. O meu apelo em cada canto do quarto. O batom, o vestido. A meia encolhida, sem par. A rede pendurando, solitária, um sorriso na varanda. À espera de um outro sorriso, talvez. O sorriso, na borda da xícara, o senhor esqueceu. A alça sem os laços do seu dedo. Minhas mãos na cintura. À espera dos seus braços, senhor. Nós dois rodopiando pela sala, em voltas e voltas que a cera apagou. E que devem ser as voltas dessa agulha. Da agulha que lhe ensina a costurar um tecido ferido, senhor.
Depois, é preciso desatar as linhas. As linhas que o senhor me escreveu nessa carta. E me trouxe a essa casa, um mês depois. Então, era isso, senhor? O leite coalhado. As teias de aranha costurando as fendas no teto. O saca-rolha perdido. A meia furada. A camisa sem botão... O botão sem a casa. A casa. A casa. A casa? O prato na parede. O jarro na parede. A estátua na parede. O relógio tremendo no chão. O ponteiro no cinco. O ponteiro no cinco. O ponteiro no cinco. Uma camisa com os braços rasgados. O retrato em duas partes. Um grito alto. As mãos no colo, em abandono. Ouve agora o meu apelo, senhor?
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Su: Ser é mais do q se pode fazer. O implícito não consegue guardar o jornal... é olhar nos olhos e sentir alguma coisa boa pelo q o outro é... Não é nem a ilusão do entendimento. As palavras são muito úteis pra separar uma cadeira do chão mas sempre será revelada sua aleatoriedade quando se tratar de sentimento!! Ainda sim, se só com elas se conseguir satisfazer a descrição do q é bom, então deixo longe o olhar, vou embora com ele...
fonte: http://ritaapoena.zip.net/
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